A jornada do cirurgião e da paciente com retenção urinária em cirurgias pélvicas radicais


A cirurgia pélvica radical é um campo incrivelmente desafiador. Com cada vez mais recursos para o tratamento cirúrgico de quadros oncológicos, de reconstrução pélvica e de endometriose profunda, passamos a ser cada vez mais radicais e, ao mesmo tempo, mais cientes da necessidade de preservar as funções da pelve para garantir uma boa qualidade de vida para os pacientes. 

Nas últimas décadas, aprendemos com a Neuropelveologia a importância do conhecimento dos nervos somáticos e autonômicos da pelve, nos familiarizamos com as técnicas de neuropreservação e compreendemos a importância a identificação das disfunções autonômicas pélvicas pré-operatórias, passando pela complexa abordagem cirúrgica, até o diagnóstico e manejo de suas consequências nas funções urinária, evacuatória e sexual no pós-operatório. 

Sabemos que, mesmo em mãos de cirurgiões experientes, as cirurgias pélvicas radicais podem causar estes tipos de disfunção. Complicações como retenção urinária no pós-operatório em quase 5% dos casos, decorrentes da lesão dos nervos autonômicos pélvicos, e que esta complicação pode chegar a até 41% quando realizadas por cirurgiões menos especializados. (Gabriel, 2012; Imboden 2021). 

As fibras simpáticas da pelve se originam das raízes do tronco simpático para-aórtico, que formarão o Plexo Hipogástrico Superior. Do Plexo Hipogástrico Superior originam-se os Nervos hipogástricos direito e esquerdo, na altura do promontório sacral.

Os nervos esplâncnicos pélvicos são feixes nervosos finos, originados do ramo anterior de S2, S3 e S4, cuja função é parassimpática. Estes últimos se unem ao nervo hipogástrico ipsilateral e formam o plexo hipogástrico inferior, composto por fibras simpáticas e parassimpáticas, que se dividirá nos ramos vesical, uterino e retal.

As funções autonômicas vesicais, anorretais e sexuais da pelve são controladas por estes plexos, cuja porção simpática, proveniente de T10 a L3 é responsável pela propriocepção da bexiga, do reto e do útero e ainda por promover continência, proporcionada pela contração do esfíncter interno da uretra, via receptores alfa 1 e pelo relaxamento do músculo detrusor, proporcionado pelos receptores beta adrenérgicos. 

Já a porção parassimpática, proveniente dos nervos esplâncnicos pélvicos, originados de S2, S3 e S4, é responsável pela função de nocicepção visceral, aumento da peristalse do reto e sigmóde e cólon descendente e esvaziamento vesical, ou sela, pela contração do músculo detrusor simultaneamente ao relaxamento do esfíncter uretral interno, através da atividade colinérgica nos receptores do tipo M3. 

Os sintomas causados pelas lesões nervosas autonômicas intraoperatórias podem ser imediatos, evoluindo com retenção urinária imediatamente após a retirada da sonda vesical de demora. Entretanto, podem também se apresentar de forma subclínicas, ou ainda serem percebidos pela mulher como um fator de melhora do seu quadro. Neste último caso, a perda da sensibilidade vesical leva a uma diminuição da frequência miccional e das urgências urinárias, pela não percepção de seu enchimento, dando a impressão de que houve uma melhora positiva em suas queixas urinárias irritativas apresentadas previamente à cirurgia. 

A instalação de um distúrbio de esvaziamento pode se dar aos poucos, decorrente da perda de propriocepção vesical e da incoordenação vesico-esfinctirana, mecanismos de distensão progressiva da bexiga e a consequente lesão do músculo detrusor levam à perda se sua capacidade contrátil. Estes eventos podem levar uma média de sete anos para que a paciente passe a ter queixas clínicas de sensação de esvaziamento incompleto, jato urinário fraco e infecções urinárias de repetição. (Possover, 2012) 

Baseada nestas informações, a equipe de Cirurgia Pélvica Avançada do Increasing, do Brasil, desenvolveu um protocolo para diagnosticar as disfunções pélvicas autonômicas eventualmente já existentes no pré-operatório, mesmo quando subclínicas, bem como uma forma de acompanhamento dos desfechos pós operatórios e seu seguimento a longo prazo, mantendo a paciente sobre vigilância e evitando complicações tardias, que podem ser irreversíveis. 

Neste protocolo, todas as pacientes com indicação de cirurgia pélvica radical são submetidas a uma avaliação multidisciplinar pré-operatória, que inclui um estudo urodinâmico. A udorinâmica serve tanto para o diagnóstico de disfunções já instaladas, sintomáticas ou assintomáticas, como também para o registro da função miccional basal da paciente antes do procedimento, a fim de facilitar o diagnóstico de disfunções adquiridas ao procedimento. 

Já foi demostrado que cerca de 50% das pacientes com endometriose tem sintomas urinários, mas que até 60% destas mulheres podem ter alterações ao Estudo urodinâmico. Assim as disfunções podem estar presentes mesmo nas pessoas sem queixas, o que torna essencial que todas sejam investigadas. (Resende Jr,). 

Esta paciente será avaliada por uma equipe especializada em disfunções pélvicas, composta por uma fisioterapeuta pélvica experiente, para investigar, compreender e tratar possíveis quadros associados de dor miofascial, que são bastante comuns, e ainda para tratar disfunções urinárias e evacuatórias já existentes. A nutricionista que fará adequações dietéticas e tratamento para constipação, quando necessário. A equipe de enfermagem treinará a paciente para o cateterismo intermitente, o que facilita a retirada precoce da sonda de demora, caso esta seja necessária no pós-operatório. 

Entrar em contato com o cateterismo intermitente limpo neste momento é uma medida de suma importância para o consentimento cirúrgico, pois auxilia a paciente na compreensão de possíveis consequências do procedimento cirúrgico, preparando-a e auxiliando na tomada de decisão quanto a radicalidade do procedimento. 

A avaliação psicológica auxiliará a paciente a assimilar as informações e no acolhimento diante da proposta de um tratamento invasivo. 

Após o procedimento, todas as pacientes terão seu esvaziamento vesical vigiado por controles de resíduo pós-miccional imediatamente após a retirada da sonda vesical de demora. As medidas podem ser obtidas através de cateterismo ou ultrassongrafia, conforme disponibilidade. E a conduta será definida pelos valores residuais:  

·      Se forem inferiores a 100 ml, esta paciente deve ser orientada a urinar espontaneamente e a fazer uma urofluxometria de controle em 6 semanas ou em 10-14 dias quando houver dissecção de nervos;

·   Se o resíduo estiver entre 100-150 ml a paciente deve ser orientada a urinar em intervalos programados a cada 2-3 horas, com necessidade de uma nova urofluxometria em 7 dias;

·    Se os resíduos forem superiores a 150 ml, estas pacientes serão submetidas a cateterismo de demora, quando necessário, ou preferivelmente ao cateterismo intermitente limpo que, idealmente, já haverá sido treinado. As medidas de reabilitação de assoalho pélvico e eletroestimulação deverão ser iniciadas precocemente.

A necessidade de seguimento com equipe multidisciplinar deve ser reavaliada após a fase aguda do pós-operatório. O acompanhamento das disfunções vesicais deve ser mantido com urofluxometria ou estudo urodinâmico completo, rotineiramente, nos períodos de 6 semanas, 3, 6 e 12 meses a após, anualmente. Novas avaliações com a equipe multiprofissional são sugeridas em um período de até seis semanas e, conforme as necessidades individuais da paciente, quando será traçado um novo plano terapêutico. A reabilitação do assoalho pélvico deve ser mantida pelo tempo necessário, conforme avaliação de fisioterapeuta pélvico. E, nesta fase é de suma importância que a paciente seja avaliada novamente pela enfermagem e tenha a técnica de cateterismo intermitente limpo revista, bem como tenha um seguimento psicológico adequado para lidar com o impacto do tratamento em sua qualidade de vida e funcionalidade.

Com estas estratégias, criamos um planejamento seguro para a paciente e para o cirurgião. Estar ciente dos riscos envolvidos na cirurgia pélvica avançada e ter respaldo de uma equipe capacitada faz com que o diagnóstico e a condução das disfunções pélvicas ocorram de forma mais sutil e com melhores resultados a todos os envolvidos.


Dra. Augusta Morgado

---


Bibliografia

Gabriel B, Nassif J, Trompoukis P, Lima AM, Barata S, Lang-Avérous G, Wattiez A. Prevalence and outcome after laparoscopic surgery for severe endometriosis – does histology provide answers? Int urogynecol J. 2012. Jan, 23 (1):111-6. DOI: 10.1007/s00192-011-1492.Epub 2011 jul6 

Imboden S, Bollinger Y, Hãmã K, Mohr S, Kuhn A, Mueller MD. Predictive factors for voiding dysfunction after surgery for deep infiltratin endometriosis. The Journal of Minimally Invasive Gynecology. Jan 17, 2021 

Resende Junior JAD, Crispi CP, Cardeman L, Buere RT, Fonseca MF. Urodynamic observations and lower urinary tract symptoms associated with endometriosis: a prospective cross-sectional observational study assessing women with deep infiltrating disease. Int Urogynecl J.

 Possover M. Pathophysiologic explanation for bladder retention in patients after laparoscopic surgery for deep infiltrating rectovaginal and/os parametric endometriosis. Fertility and Sterility. Vol 101, No 3, March, 2014.

Zakhari A, Mabrouk M, Raimondo D, Mastronardi M, Seracchioli R, Mattei B, Papillon-Smith, Solnik J, Murji A, Lemos L. Keep your landmarks close and the hypogastric nerve closer: an approach to the nerve-sparing endometriosis surgery. Video Article. Journal of Minimally Invasive Gynecology, 2019